Putativa carta de um Putativo individuo

Crónica

Transcrevo na íntegra esta carta que podia muito bem ter sido escrita por um gajo da Trofa, mas que, não sendo, foi escrita pelo mesmo autor desta frase..

 

“Exmo Sr Duarte Palha,

Sou só um gajo da Trofa. Nasci Antero, e Antero me fiz homem, que ainda não havia cá mudanças de nome ou género na altura em que o mundo que conhecia ainda era o mundo que conheci. A gente era o que nascia e estava o problema resolvido.

Encarregou-se a vida de me fazer funcionário cumpridor num serviço publico, das nove às cinco, cinco dias por semana, fora férias, feriado e pontes. Sindicalizei-me e cumpri com o dever da greve, sempre que a isso fui obrigado pelas parcas condições de trabalho, e hei-de me reformar com o sentimento de dever cumprido, assim que os anos de descontos me assegurarem um fim de vida descansado.

Trouxe-me o tempo dois filhos, Marcos e Margarida, e outras tantas paixões – nenhuma delas a minha esposa, que foi coisa assim de afeição calma e arranjo fácil – o Porto, o do Futebol, e a Tourada. Nunca fui de futebol até aos tempos do Pedroto. Aí sim.senti vontade de voltar a ser miúdo e trocar os piões por uma bola de trapos. Deixei-me levar por aquele Porto que se fez nação desafiante das gentes do sul. Aquilo eram outra vez os cruzados a combater os mouros com uma armadura azul e branca! Desde aí que me ficou este bicho que não me larga, mesmo em anos difíceis, em que os nossos se esquecem da gloriosa causa que defendem e poupam no suor que gastam.

Com os touros não, foi paixão de criança. Sempre fui muito de animais, cabras ovelhas e cães. Porcos não, afugentava-me o cheiro. Até que uma tarde o meu pai me levou a uma tourada na Póvoa. Desde esse dia sempre que ia para a terra dos meus avós ficava sentado durante horas a ver as juntas de bois ali para trás e para a frente, com uma paciência interminável, e eu sempre à espera que se lhes acabasse a pachorra voltassem o arado e mais o homem do pau e tivessem de vir de lá dois campinos de vara na mão, repor a ordem no campo, como tinha visto nessa tarde..

Já não me lembro bem do que vi nessa primeira vez, que era ainda rapaz novo, mas lembro-me de me ter espantado com a cor dos “casacos” dos cavaleiros, de sentir medo nas pegas e achar que aqueles homens eram feitos de outra coisa que não da mesma carne que eu. Também achei que os dois homens de vara na mão eram dois forcados tresmalhados. Não me lembro de muito mais, mas lembro-me que me ficou uma coisa cá dentro e que durante três dias toureei todos os bancos de cozinha, com bandarilhas de colher de pau, até que a minha mãe se zangou e acabou com a tourada dentro de casa.

Nunca mais falhei a ida anual à Póvoa, e aí fui conhecendo os costumes e pondo os nomes às coisas que aconteciam naquela arena. Os “casacos” passaram a casacas e os os dois forcados de vara na mão fizeram-se campinos. E depois fui a outras, a Viana, à Figueira, ao Marco, e meia dúzia de vezes que se fizeram touradas aqui na Trofa. Fiz-me fã do Baptista, do Zoio, do Bastinhas, do Rouxinol e de todos os forcados que vi agarrarem-se aos cornos de um boi, ainda que não lhes consiga pôr o nome.

Hoje já corro menos o praças porque já há menos praças para correr. À Trofa, nunca mais voltaram “os touros”, ao Marco, deixaram de ir, acabaram com Viana e agora dizem que na Póvoa também se vai acabar a festa . A Póvoa! Aquela praça que me viu passar de gaiato a homem! Aquela praça que mais do que um redondel, era um marco da festa no norte! Não me consolo… Ainda me sobra Ponte de Lima e a Figueira, lá mais longe, mas o bicho dos toiros não o mato com tão pouco…

Confesso-lhe que escrevo esta carta a custo. Os dias andam sombrios aqui por cima, e o verão nunca mais entra com força. A Póvoa sem touros é coisa que não me cabe na cabeça! Lá vou ter que me meter no carro e fazer quilómetros e gastar dinheiro a caminho do Ribatejo para “dar de comer” a este vício que não me larga, porque há uns senhores de Lisboa, de cabelo comprido, roupas amaneiradas e que não gostam de carne, que dizem que “no norte não há afición”…

Com pesados cumprimentos,
Antero Pessoa”

 

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